A depressão tem efeitos devastadores sobre todos os aspectos da vida do indivíduo e é uma das doenças que mais geram sofrimento e incapacidade ao seu portador. Além disso, ela também pode levar à morte principalmente por meio do suicídio.
Este quadro se agrava ainda mais quando a pessoa busca a ajuda de um profissional habilitado e mesmo assim não melhora nada ou o suficiente para retomar a sua vida. Infelizmente, isso é bem comum. Estudos apontam que de 30 a 40% das pessoas que se tratam com os antidepressivos têm resultados pouco satisfatórios.
Sendo assim, os antidepressivos são ferramentas insuficientes para ajudar boa parte das pessoas que sofrem com este mal, tornando urgente que novas opções de tratamento sejam disponibilizadas para as pessoas em sofrimento.
A cetamina é justamente umas dessas opções que podem preencher esta lacuna deixada pelos antidepressivos.
Ela foi desenvolvida em 1962 como um anestésico de características muito peculiares. Desde então, vem sendo usada em medicina em diversas situações.
Inclusive, muitas vezes, é usada para anestesia em pequenos procedimentos em pronto socorro pediátrico por não causar insuficiência respiratória e, portanto, não demandar o uso de respiração artificial.
Ela também foi muito utilizada durante a Guerra do Vietnã como um anestésico seguro que pudesse ser usado até por pessoas leigas durante as batalhas para o tratamento dos feridos. Caso um soldado fosse ferido, o seu colega leigo poderia usar a cetamina no campo de batalha para tratá-lo.
Nos últimos quinze anos , diversos estudos importantes demonstraram que ela também tem efeito antidepressivo intenso em horas ou dias em cerca de 70% dos pacientes que não melhoram com o tratamento convencional.
Normalmente, doses abaixo das usadas em anestesia são utilizadas para depressão. Ainda assim, alguns efeitos adversos podem ocorrer como náusea e sintomas dissociativos. Estes consistem em sensações de não sentir ou não ter controle do corpo e, às vezes, sensações de estar num sonho ou algo semelhante. No entanto, estes efeitos ocorrem apenas durante a infusão. Nenhum estudo reportou efeitos colaterais graves ou duradouros sejam eles psiquiátricos ou clínicos com o tratamento.
Além da depressão maior unipolar, há evidência científica de que ela também é eficaz para depressão bipolar e para dor crônica. Ela vem sendo estudada ainda para o tratamento do transtorno obsessivo-compulsivo e do transtorno do estresse pós traumático.
Dessa maneira, a cetamina passou a ser vista como um divisor de águas na terapia antidepressiva.
Como disse o diretor do Instituto Nacional de Sáude Mental dos EUA, Thomas Insel: “a cetamina é a novidade mais importante na terapia antidepressiva em décadas”.
No primeiro semestre de 2019, o FDA aprovou a versão intranasal de um isômero do fármaco , a escetamina, para o tratamento da depressão refratária. No segundo semestre de 2020, a ANVISA fez o mesmo. No entanto, apesar das evidências científicas robustas, a apresentação parenteral segue off-label.
Claro que, assim como todos os tratamentos, ele tem suas limitações e não ajuda a todos. Entretanto, auxiliou e mudou a vida de muitas pessoas que já haviam perdido as esperanças.
Portanto, considerando os dados científicos positivos publicados nas revistas internacionais mais importantes da psiquiatria, a minha experiência com a cetamina e a aprovação do isômero escetamina pelo órgãos reguladores, posso afirmar que a cetamina já é uma realidade no tratamento da depressão.
Imagino que você ainda tenha muitas dúvidas sobre o tratamento com cetamina. Por isso, recomendo que você assista à entrevista abaixo e leia as respostas que dei às perguntas mais frequentes sobre esta novidade no tratamento da depressão.
O que é a cetamina?
A cetamina é um medicamento que foi desenvolvido em 1962 para anestesia. É um medicamento bastante utilizado na medicina moderna, e está na lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial de Saúde. Ela tem uma variedade de usos médicos e é aprovada pela FDA e ANVISA como um anestésico. Já para depressão seu uso ainda é offlabel. Isto é, apesar da evidência científica comprobatória em relação a segurança e eficácia do fármaco para depressão, esta indicação ainda não é prevista em bula. Contudo, no primeiro semestre de 2019, o órgão regulador americano (FDA) aprovou a sua versão intranasal, o isômero escetamina, para depressão refratária.
A cetamina tem um histórico notavelmente seguro em ambientes cirúrgicos, e é frequentemente utilizada em cirurgia pediátrica. Também é comumente utilizada para tratar a dor física intensa e crônica. O Exército dos EUA tem usado a cetamina como anestésico no campo de batalha desde a Guerra do Vietnã. Ela também é usada em medicina veterinária. Da mesma maneira que muitos outros medicamentos essenciais , a cetamina é roubada de fornecedores e farmácias para ser abusada para fins recreativos.
A cetamina pode ser útil para quais transtornos psiquiátricos?
Depressão maior, depressão bipolar e transtorno do estresse pós traumático são os transtornos para os quais há mais evidência científica. Ela também pode aliviar sintomas de TOC e de ansiedade generalizada, mas os dados ainda não são conclusivos em relação a isso. Além disso, ela tem sido usada para analgesia em casos de dor crônica.
Quando a cetamina é indicada para depressão?
Ela é indicada para pessoas que não respondem bem ao tratamento convencional; para pessoas que não toleram o tratamento convencional; e para os que apresentam ideação suicida e risco de suicídio.
Qual a taxa de sucesso?
Cerca de 70% das pessoas com depressão maior ou bipolar que não respondem bem ao tratamento convencional, melhoram com o tratamento com infusões de cetamina.
Demora quanto tempo para fazer efeito?
Boa parte das pessoas melhoram já nas primeiras 24 horas após a primeira infusão. No entanto, podem ser necessárias infusões adicionais para a pessoa melhorar ou sentir o efeito máximo do tratamento. De qualquer maneira, em duas a três semanas no máximo, já é possível concluir sobre a eficácia do tratamento.
Esses dados são comprovados cientificamente?
Sim. Diversos grupos de pesquisa independentes encontraram a mesma taxa. Veja o gráfico abaixo, retirado do “Biological Psychiatry Journal” – Jornal da Psiquiatria Biológica – um dos jornais científicos mais importantes da psiquiatria.
No eixo y, está uma escala de depressão. Quanto maior a pontuação, mais sintomas depressivos. Já no eixo x, está uma escala de tempo em minutos a horas. A linha verde representa o grupo de pacientes que se trataram com uma infusão de cetamina enquanto a laranja representa o grupo de pacientes que se trataram com placebo ( infusão apenas com soro fisiológico por exemplo).
Observe a redução dos sintomas depressivos dentro de minutos a horas após o tratamento com cetamina.
Quais são as contra indicações?
Problemas cardiológicos graves ou instáveis e sintomas psicóticos agudos são as principais contra indicações.
Quais são os riscos?
Na ausência das contra indicações acima, não há riscos significativos. Estas contra indicações são sempre descartadas na avaliação clínica antes da indicação do tratamento.
Como a cetamina funciona no cérebro?
A depressão danifica o sistema de comunicação entre as áreas do cérebro responsáveis pela memória, aprendizagem, regulação emocional e pensamento. A cetamina é capaz de promover a produção dos materiais necessários para fazer reparos nestes danos em questão de horas. Ela atua de maneira bem diferente dos antidepressivos convencionais, principalmente, ativando um receptor do glutamato no cérebro chamado AMPA enquanto um bloqueia um outro chamado NMDA.
Tenho que interromper os meus remédios?
Em geral, recomendo que continue com os seus remédios durante as primeiras infusões para evitar um possível fator de confusão no momento de avaliar a resposta ao tratamento. No entanto, depois reavaliamos a prescrição.
Se o tratamento for bem sucedido, poderei parar os meus remédios?
Isto é decidido para cada caso particular em função de uma série de fatores. Mas, em alguns casos é possível sim.
Como é a experiência do tratamento?
O medicamento é administrado de forma muito lenta, durante 40 minutos. Nos primeiros 15 a 20 minutos, as pessoas não costumam sentir nada. Depois de 20 minutos, as pessoas tendem a notar uma sensação de leveza, flutuação, ou dificuldade de ter o controle do corpo. Às vezes, alguma dormência nos dedos dos pés ou na área ao redor da boca. Ao longo deste período de 20 minutos, estes sentimentos tendem a aumentar, de modo que o medicamento está no pico da sua intensidade no final da aplicação. Outros sentimentos possíveis incluem uma sensação de estar em um sonho e de aumento da percepção( ex: ruído de fundo pode parecer mais alto, cores ou luzes são mais intensos), e uma sensação muitas vezes descrita como “estranho, impar, diferente, ou interessante “. Menos comumente, as pessoas podem experimentar alguma ansiedade ou náuseas. No entanto, a maioria das pessoas descreve a experiência como agradável. Estas sensações começam a diminuir em cerca de 5 a 15 minutos e passam completamente em 45 a 50 minutos após o término da aplicação. A maioria das pessoas deverá estar conosco por cerca de 90 minutos do momento da entrada na clínica até a saída dela. A partir daí, já sem efeitos colaterais. Tampouco, costuma haver efeitos adversos no período entre as infusões ou após as infusões.
Eu estarei acordado?
Em geral, sim. As doses usadas são bem menores do que as anestésicas. No máximo, você poderá ficar com um pouco de sonolência ou tirar um cochilo.
O que poderei fazer durante a infusão?
Muitos gostam de ouvir música. O mais importante é relaxar e procurar não se preocupar com quaisquer sensações estranhas, pois elas são esperadas e passageiras. Os efeitos dissociativos costumam impedir a leitura porem.
Como saberei se funcionou?
Você deverá notar melhora do humor e do ânimo, redução da angústia, pensamentos mais positivos e redução ou fim da ideação suicida.
Qual é o protocolo de tratamento?
Normalmente, são 6 infusões iniciais em um período de 2 a 3 semanas. Depois, em caso de melhora, costuma ser necessária uma manutenção semanal ou quinzenal por alguns meses. Pelo menos até que outras partes do tratamento sejam ajustadas como a prescrição, a psicoterapia e etc. Estudos recomendam que as primeiras 3 infusões iniciais sejam feitas na dose padrão de 0,5mg/kg. Caso haja melhora, a dose é mantida. Senão, as outras 3 infusões são feitas em doses maiores de até 1mg/kg se o paciente tolerar bem. Se ainda assim, não houver melhora, significa que a cetamina não é a solução para este indivíduo e o tratamento é interrompido. Por outro lado, se houver resposta significativa se inicia a fase de manutenção.
Quanto tempo dura o efeito do tratamento?
A duração do efeito de apenas uma aplicação é de apenas alguns dias, já o efeito das 6 aplicações iniciais costuma durar semanas. Por outro lado, caso seja feito o protocolo de manutenção por alguns meses, o efeito também já passa a ser bem mais duradouro em alguns casos. No entanto, para certas pessoas, pode ser necessário fazer o protocolo de manutenção indefinidamente se elas só responderem a cetamina e recaírem ao interromperem.
Aqui na clínica, eu procuro fazer todas as intervenções possíveis para que a pessoa consiga parar com a cetamina apesar da depressão crônica. Por exemplo, se houver traumas psicológicos, procuro tratá-los. Em outros casos, se faz necessário mudar ou otimizar a prescrição.
Esse conjunto de intervenções, algumas vezes, permite retirar o tratamento com a cetamina.
Eu posso fazer a infusão e continuar com o meu psiquiatra?
Sim, podemos trabalhar em equipe.
O que eu posso fazer para otimizar o efeito do tratamento e eventualmente parar com as infusões?
De fato, quando a pessoa está muito depressiva é difícil manter o auto-cuidado e fazer atividades que ajudam a melhorar o bem estar e a saúde mental. Recomendo que você aproveite a melhora com a cetamina para fazer justamente isso. Utilize a cetamina como um momento de virada. Volte a fazer coisas que você gosta, a praticar atividade física, a pegar sol, a se alimentar e dormir bem, cuidar dos seus relacionamentos, a fazer planos, praticar a gratidão e até a fazer psicoterapia se for o caso. Tudo isso pode otimizar o efeito da cetamina e, eventualmente, contribuir para permitir que você interrompa as infusões.
Por que você decidiu começar a prescrever a cetamina?
Desde que me formei em psiquiatria, foquei minha prática e meus estudos nos casos de transtornos de depressão de difícil tratamento. Então, logo fiquei insatisfeito com as opções disponíveis de medicamentos que levam muito tempo para funcionarem, causam efeitos colaterais inaceitáveis e ainda são insuficientes para cerca de 40% dos pacientes. Por isso, decidi pesquisar sobre a cetamina. Após examinar toda a evidência científica que atesta a eficácia do tratamento e visitar clínicas nos EUA que já ofereciam este serviço com sucesso e segurança, decidi fazer o mesmo para os brasileiros.
A cetamina causa dependência química?
Alguns podem ter ouvido que a cetamina é utilizada como uma droga de abuso e se preocupam com uma potencial dependência química. No entanto, não há estudos que demonstrem que, para este tipo de uso, há este risco. Ademais, tanto a minha experiência quanto a de outros profissionais da área é de que não há casos de pessoas que fizeram este tratamento e se tornaram dependentes. Provavelmente, a baixa dose utilizada, a falta de acesso ao medicamento em casa, o uso apenas dentro de um contexto de tratamento e a baixa frequência das infusões são os fatores que explicam isso. Portanto, a cetamina pode causar dependência química, assim como outros psicotrópicos, mas não neste contexto de tratamento para depressão. Todavia, se o paciente for um dependente químico, é necessário pesar bem riscos e benefícios antes de se optar pelo tratamento com a cetamina.
Por que cetamina era conhecida como um tranquilizante de cavalos?
A cetamina foi originalmente desenvolvida para uso humano, e tem sido utilizada de forma segura em seres humanos há mais de 50 anos. Muitos medicamentos para seres humanos, também são úteis em medicina veterinária e a cetamina é um deles. O termo “tranquilizante de cavalo” é impreciso, uma vez que a cetamina é um anestésico, não um tranquilizante. Este termo é também utilizado por aqueles que se opõem a terapia com cetamina para a depressão numa tentativa de desacreditar o tratamento, fazendo a cetamina soar como algo adequado apenas para os animais. Portanto, é um termo intencionalmente enganoso, já que a cetamina é usada em humanos com segurança há mais de cinco décadas.
Quanta experiência você tem?
Já foram feitas mais de 7000 infusões na minha clínica desde 2015. A taxa de sucesso é semelhante à descrita na literatura científica e sem nenhum efeito adverso sério ou duradouro observado.
Por que esta opção de tratamento ainda é tão pouco difundida?
Em primeiro lugar, por ser um medicamento anestésico e de uso principalmente endovenoso. Sendo assim, é necessário ter os equipamentos apropriados para usá-lo dentro do consultório ou da clínica bem como estudar bem as propriedades de um fármaco com o qual os psiquiatras não tiveram contato durante a sua especialização. Claro que isso tudo é bem trabalhoso e difícil de ser feito, atrasando a difusão deste tratamento.
Em segundo lugar, por ser um medicamento antigo e já há muito tempo com a patente quebrada, não houve interesse financeiro da indústria farmacêutica em promover este tratamento. Isso significa que os caríssimos estudos de grande porte e de longa duração necessários para aprovação pelo FDA para esta indicação demoraram para serem feitos. Com isso, não havia representantes de vendas da cetamina tentando promover para os psiquiatras esta opção terapêutica.
No entanto, ciente do grande potencial da cetamina como antidepressivo, a gigante farmacêutica Janssen mudou este quadro ao patentear uma forma de cetamina intranasal, o isômero escetamina, que já foi aprovada pelo órgão regulador americano (FDA) em 2019. No segundo semestre de 2020,a ANVISA também ratificou a segurança e eficácia do tratamento. Com isso, acredito que tanto o tratamento com escetamina intra nasal quanto com a cetamina parenteral serão cada vez mais difundidos.
Onde posso encontrar mais informações sobre este assunto?
Recomendo que procure por informações no site ketamineadvocacynetwork.org. É um site de uma associação americana de pacientes que já passaram pelo tratamento e decidiram divulgá-lo.